VIDA E OBRA DE
VASCO FERNANDES
(GRÃO VASCO)
Principal vulto da pintura portuguesa do séc. XVI, Vasco Fernandes nasceu em Viseu por volta de 1480. Entre 1506 e 1511, executou o retábulo da Sé de Lamego, inspirado pela Escola Flamenga. A este período pertenceria também o S. Tiago e duas tábuas de Besteiros. Trabalhou na oficina de Jorge Afonso, em Lisboa, em 1514. Cerca de 1520, realizou o retábulo da Igreja Matriz de Freixo de Espada-à-Cinta, que é uma obra de transição para as obras mais pessoais do Pentecostes de Coimbra e dos retábulos da Sé de Viseu: S. Sebastião, O Baptismo de Cristo, O Pentecostes, O Calvário e S. Pedro.
Nestes trabalhos nota-se a influência renascentista, mas também o dramatismo e o poder criador característicos de Grão Vasco. São-lhe ainda atribuídas outras pinturas: Santa Luzia (Museu Nacional de Soares Reis, no Porto), A Ceia (Museu Grão Vasco, em Viseu), A Assunção da Virgem (Museu Nacional da Arte Antiga, em Lisboa).
Quem foi Vasco Fernandes, qual a sua formação e a que fontes recorreu? Estes os principais quesitos a que deve obedecer a investigação da sua obra, mau grado todos os estudos efectuados até hoje.
Um outro aspecto digno de registo é o facto, invulgar entre os principais pintores nacionais, de Vasco Fernandes assinar algumas das suas pinturas, assumindo uma individualidade artística reveladora de uma nova posição do pintor perante a sociedade. Com esta atitude, Vasco Fernandes aproxima-se de Albrecht Durer, cuja obra gravada conheceu, como veremos. Um Vasco Fernandes que todos querem português e viseense, sem pensarem que a nossa arte não ficaria menos rica se fosse provada a sua origem estrangeira. Com efeito, figuram na nossa história da arte portuguesa homens como Nicolau Chanterenne, João de Ruão, Boutaca, João de Castilho e Hodarte. Isso só nos enriquece, porquanto revela o gosto nacional apurado, que sabia receber no seu meio quantos trouxessem contributos positivos à nossa cultura artística.
Nada nos pode levar desde já a admitir, sem reservas, que o mestre radicado em Viseu não era português. Todavia, importa notar que o primeiro documento que se refere explicitamente data de 1501-1502 e dá-o como casado com a filha do alfaiate Pêro Anes, Ana Correia. Já então era pintor e homem de haveres.
Para além do mais, um estudo circunstanciado da sua simbólica revela um Vasco Fernandes cosmopolita, conhecedor profundo da pintura e da gravura centro-europeias, um artista bem distanciado da oficina de Lisboa dirigida por Jorge Afonso, uma oficina influenciada pelos modelos flamengos do maneirismo de Antuérpia.
Vasco Fernandes é um mestre integrado nas grandes correntes da pintura da Europa Central. E é sem dúvida o primeiro divulgador em Portugal da simbólica dureriana, o que demonstra que havia um elo de ligação grande entre a cultura alemã e a cultura portuguesa.
Todavia, o aprofundamento da estética renascentista e a transição para a primeira geração maneirista ficam a dever-se ao conjunto de mestres constituído por Jorge Afonso, pelos artistas com influência flamenga Francisco Henriques, Frei Carlos, mestre da Lourinhã; pelos artistas regionais Vasco Fernandes (só na sua primeira fase) e o dito mestre do Sardoal, hoje mais justamente considerado mestre da oficina de Coimbra ou monogramista MN; por Garcia de Fernandes, já tardio nas suas pouco originais opções, e por Cristóvão de Figueiredo. A actividade de todos eles define o nosso Alto Renascimento.
Entre 1535 e 1542, o mestre de Viseu conjuga com modo diverso dos pintores da oficina de Lisboa formas marcadamente maneiristas, nos ensaios de contraposto e na agitação antinaturalista do Pentecostes, da sacristia da Igreja de Santa Cruz de Coimbra, com propostas ainda renascentistas.
Fiel a uma linha mais germânica do que flamenga, Vasco Fernandes utiliza no painel Jesus em casa de Marta e Maria (Viseu, Museu Grão Vasco) duas gravuras de Durer, a Melancolia I (1514) e O Filho Pródigo (c.1496), na paisagem que se vê por sobre a cabeça do jovem São João. Mas ainda nesta pintura, talvez por influência do teólogo que sugeriu a sua composição, depara-se-nos o conceito neoplatónico devida activa (Marta) e vida contemplativa (Maria).
Não é por acaso que Vasco emprega a gravura Melancolia I para figurar Maria, porquanto aquela é um exemplo evidente da vida contemplativa.
Todavia, já em alguns dos painéis dos retábulos de Freixo de Espada-à-Cinta, como na Adoração aos Magos, se sente a tendência maneirista do mestre. O grande São Pedro (Viseu, Museu Grão Vasco) constitui, apesar de pertencer à última época da sua actividade, uma peça marcadamente renascentista, no realismo do rosto e das proporções e no naturalismo da árvore na paisagem.
Os mestres portugueses destacam-se, especialmente, na Leitura Nova, e aí ser-nos-à lícito mencionar, para além de Álvaro Pires já referido, António Fernandes, cuja actividade poderemos situar, de acordo com Sylvie Deswarte, entre 1538/48-1551. Parece-nos curioso recordar as relações possíveis entre a sua obra e a de Vasco Fernandes, na fase maneirista deste mestre. Como o Grão Vasco, António Fernandes assinava algumas das suas obras de diversas maneiras (ANT.º FRZ, AT-FZ). A sua actividade em Tomar e o seu estilo já maneirista levam-nos à aproximação dos dois artistas, mera hipótese de trabalho que futuros estudos poderão confirmar.
De tudo o que foi dito pode-se concluir que Vasco Fernandes foi um enorme pintor, com muitas obras de grande qualidade, entre as quais é justo destacar os dois quadros de S. Pedro, o do Museu Grão Vasco, sóbrio e realista, e o da Igreja de Tarouca, poético e intensamente cromático.