Algo vai podre no reino da Dinamarca, mas não na representação do Hamlet no Teatro Viriato, pois a peça de Shakespeare, encenada pelo Ricardo Pais, que nós tivemos o privilégio de ver no dia da estreia, é um espectáculo de um nível excepcional, que honrou o nosso teatro municipal e que tornou Viseu, durante alguns dias, a capital teatral de Portugal.
Teatro de grandes frases, de grandes conceitos, de grandes diálogos e de prolongados e inumeráveis monólogos, a peça Hamlet é um dos cumes da obra teatral de Shakespeare e do teatro em geral e nessa medida a sua representação só está ao alcance de grandes companhias teatrais, com actores fora de série e com encenadores geniais.
É que no caso do Hamlet não basta um grande actor para o papel principal, pois os papéis secundários são igualmente importantes. É portanto uma peça que não está ao alcance de amadores nem também de profissionais apenas medianos, pois exige na sua encenação uma competência enorme de todos os intervenientes. Aliás nós pensávamos que tal peça também não estaria sequer ao alcance do Ricardo Pais, mas felizmente estávamos enganados.
Já vimos algumas adaptações cinematográficas e teatrais do Hamlet, mas só uma dessas adaptações nos satisfez plenamente. Trata-se do Hamlet» de Laurence Olivier, fabulosa adaptação da peça de Shakespeare, que nós consideramos o melhor Hamlet de todos os tempos. Já vimos esse filme mais de vinte vezes e é uma alegria para nós vermos o percurso desse personagem tão volúvel e tão hesitante e por isso mesmo tão humano e tão próximo de nós.
Ainda nos lembramos de ter visto esse Hamlet de Olivier no antigo Teatro Viriato, há cerca de cinquenta anos, quando éramos ainda um moço púbere, e ainda nos recordamos perfeitamente, como se tivesse sido hoje, do diálogo do Hamlet com o espectro do pai, das cenas da loucura e da morte de Ofélia, da representação teatral denunciadora do crime do rei Claudius e de toda a longa sequência final.
Toda essa vivência distante no tempo perpassou, qual madalena de Proust, na nossa memória, enquanto assistíamos ao Hamlet do Ricardo Pais no Viriato actual. E por isso mesmo, na fase inicial do espectáculo, achámos que havia luzes e cores a mais no palco, pois o nosso Hamlet, o de Sir Laurence, é a preto e branco e nessa conformidade a peça também devia ser.
E é claro que no princípio também não ficámos inteiramente satisfeitos com a interpretação do João Reis, já que o desempenho de Laurence Olivier percorria na nossa memória as mesmas peripécias da peça que estávamos a ver. É que, para nós, Laurence Olivier foi o mais genial intérprete de Shakespeare de todos os tempos. Aliás, Sir Laurence foi uma referência tão incontornável que o Presidente Ronald Reagan, depois de assistir â representação do Rei Lear na Casa Branca, tratou o celebérrimo actor britânico por Vossa Majestade e fez-lhe uma respeitosa vénia.
Mas voltando ao Viriato, à medida que o novelo se ia desenrolando e a acção da peça avançava rumo ao seu trágico final, cada vez mais o Hamlet do Ricardo Pais nos ia parecendo mais convincente e não só a peça no seu todo mas também o desempenho do actor principal. E fomos constatando com prazer que o actor João Reis sabia afinal interpretar com mestria e com equilíbrio um papel dificílimo, talvez o papel mais difícil de toda a história do teatro, pois se trata de um personagem com um temperamento instável, umas vezes terno e encantador e outras vezes colérico, cínico e grosseiro.
E assim aquele príncipe da Dinamarca de que gostamos imenso, pois tal como nós é narcisista, cobarde, volúvel, hesitante, emotivo e instável, foi-se tornando cada vez mais credível até ao ponto de nós nos identificarmos completamente com ele. A verdade é que somos muito parecidos com o Hamlet e por isso compreendemos o seu amor por si próprio e pela sua própria imagem, as suas masturbações mentais solitárias, a sua atracção e a sua repulsa pelo corpo prostituído da mãe e o seu desprezo por Ofélia, a bela e burra Ofélia, e pelo pai e pelo irmão dela, que são modelos perfeitos de cortesãos e, portanto, perfeitas nulidades.
E foi desta maneira que numa noite de gala no Teatro Viriato nós curtimos intensamente o Hamlet e o João Reis e acabámos por gostar também do actor. E mesmo o Ricardo Pais, especialista em cosméticas de duvidoso gosto e em embalagens de luxo mais do que em conteúdos com valor intrínseco, neste Hamlet transfigura-se e nem parece o mesmo Ricardo Pais de anteriores encenações. É que nesta mise-en-scène tudo é tão austero e tão rigoroso que a palavra não perde força nem se descaracteriza. Perante tal obra-prima, merecedora dos maiores encómios, até nos apetece dizer, como o Hamlet no fim do Hamlet, que aqui o Ricardo Pais é o Ricardo Pais e o resto é silêncio.
VISEU CAPITAL PORTUGUESA DA CULTURA
COM O HAMLET DO RICARDO PAIS
Não há dúvida que Viseu já não é hoje aquela cidade de burros e de bêbedos e de gente obscurantista e reaccionária que era no tempo do fascismo. Embora haja ainda muita gente em Viseu a beber uns copos a mais e a perfilhar ideologias retrógradas, a verdade é que a cidade evoluiu bastante e podemos hoje muito justamente considerá-la como uma cidade de referência a nível nacional.
A melhor prova do que afirmamos é o facto de que esta cidade foi durante dez dias a capital cultural do nosso país. Com efeito, durante esse relativamente longo espaço de tempo o Teatro Viriato esgotou completamente a lotação da sua sala de espectáculos com uma peça de William Shakespeare, o Hamlet, que nada tem a ver com o teatro comercial mais rentável nem mesmo com um certo teatro de boa qualidade, mas com uma embalagem de encher o olho, pour épater le bourgeois.
Não obstante Shakespeare ser um autor relativamente conhecido, pois as suas melhores peças estão quase todas adaptadas ao cinema e as personagens principais das suas tragédias e comédias são modelos universais de comportamento e de reflexão para a humanidade em geral, a verdade é que a obra deste genial autor dramático não é nada fácil nem parece particularmente estimulante para pessoas de cultura apenas mediana.
A apetência do grande público por este autor ainda se pode compreender em relação a um filme como o Romeu e Julieta, de Baz Luhrmann, pois embora o argumento desta película respeite o texto original, a verdade é que a acção é transportada da Itália coeva para os Estados Unidos da América da era actual e a mise-en-scène é de tal modo exuberante, em termos de cenários, iluminação, guarda-roupa, movimentos de câmara e acompanhamento musical, que este Romeu e Julieta já não é o Romeu e Julieta de Shakespeare, é apenas tão somente o Romeu e Julieta do Leonardo di Caprio e dos boys adolescentes da pátria do Tio Sam.
Mas com o Hamlet do Ricardo Pais nada disso acontece, pois, como já dissemos em artigo anterior, o encenador optou pelo rigor e pela austeridade. Por isso mesmo, há que elogiar a população da nossa cidade pelo entusiasmo com que aderiu a este espectáculo, transformando num rotundo êxito aquilo que se previa ser uma aposta difícil num teatro com um público sem dúvida fiel, mas capaz de aguentar normalmente no máximo três ou quatro representações.
Que os viseenses da actualidade já não têm anquilosados preconceitos morais nem arcaicas teias de aranha no cérebro foi o que se pôde comprovar no anterior espectáculo do Teatro Viriato, o fabuloso Purificados de Sarah Kane (encenação de Nuno Cardoso), com cenas de droga, de violência, de nus integrais masculinos e femininos e de sexo ao vivo em palco, tudo isto à vista de um público culto e adulto que soube apreciar o espectáculo riquíssimo que tinha pela frente.
Promover espectáculos deste género, com grande arrojo formal e moral, devia ser, aliás, uma das tarefas prioritárias da Direcção do Teatro Viriato, afim de habituar o público viseense ao que de mais moderno e de mais provocatório se faz no mundo. É certo que o Paulo Ribeiro tem organizado todos os anos ciclos de espectáculos denominados contradicionais, mas sem grande sucesso, talvez porque não sejam suficientemente arrojados.
De qualquer maneira, o Hamlet foi a prova dos nove da maturidade cultural do povo viseense, podendo desde já dizer-se que há um antes e um depois do Hamlet no Teatro Viriato e na cidade de Viseu. O principal responsável por este importante evento foi sem dúvida o Ricardo Pais, o qual tomou conta do Teatro Viriato durante vários dias, tendo revolucionado completamente a sua estrutura e o seu funcionamento. Se o Paulo Ribeiro tivesse ido para o Ballet da Escócia o seu sucessor não seria difícil de encontrar, estava aqui em Viseu mesmo à mão de semear, seria naturalmente o Ricardo Pais.
O que é preciso é aproveitar a embalagem e procurar dar uma maior consistência à Direcção do Paulo Ribeiro, o que nem deve ser difícil, pois agora existe um governo de coligação com maioria absoluta na Assembleia da República e portanto com todas as condições de governar sem sobressaltos durante quatro anos, como aliás é desejável, pois a estabilidade governativa é muito importante para tirar Portugal do pântano e da cauda da Europa e para promover o desenvolvimento do país. Nesta conformidade, há que exigir do poder central as condições de permanência e de segurança que são absolutamente necessárias para que a actual Direcção do Teatro Viriato possa continuar a sua obra de requalificação cultural dos habitantes de uma das mais belas e das maiores cidades do nosso Portugal.
CINEMA NO TEATRO VIRIATO
Realizou-se no dia 21 de Fevereiro uma sessão de cinema no Teatro Viriato que nos emocionou muito. E pensamos que só a nós essa sessão tocou de uma maneira intensa, pois éramos, assim o julgamos, a única pessoa na sala que tinha assistido a filmes no velhinho edifício que antecedeu a estrutura arquitectónica actual.
E enquanto perpassavam pelo nosso embevecido olhar as imagens do filme com que agora o Teatro Viriato resolveu brindar a população viseense, a nossa memória ia automaticamente à procura de muitas outras imagens com que a nossa fome cinéfila se tinha alimentado noutras eras já muito longínquas no tempo objectivo dos calendários, mas muito próximas, quase passado no presente, no tempo subjectivo das nossas emoções.
E é por tudo isto, por toda esta vivência cinéfila bebida na meninice e na adolescência, que nós, sempre que entramos agora no Teatro Viriato, nos comovemos até às lágrimas. É que começámos a frequentar o Viriato (e também o Teatro Avenida), na companhia da nossa mãe, quando tínhamos apenas uns quatro, cinco anos, pois nessa altura não havia classificação etária, repartindo entre os dois cine-teatros da nossa cidade as idas aos templos profanos da nossa religião sem Deus.
Mas também íamos algumas vezes, acompanhados por colegas da escola ou do liceu, às matinées de Domingo, e nessa eventualidade ocupávamos os antigos camarotes de segunda ordem, que funcionavam como a geral e custavam a módica quantia de dez tostões. Éramos como Les Enfants du Paradis do belíssimo filme do célebre realizador francês Marcel Carné, nessa busca jamais mitigada de um enlevo de imagens que nos fizesse esquecer a cinzenta realidade da nossa juventude, amordaçada pelo salazarismo, e nos mergulhasse na realidade colorida da sétima arte.
E até nos lembramos de que uma vez, quando era projectado no ecrã do velho Viriato um filme histórico passado na antiga Roma, numa sequência em que uma formosa aristocrata desse tempo tomava um banho de imersão em leite de burra, até ouvimos um frequentador desses camarotes altos do teatro gritar alto e bom som que dali se via tudo.
Claro que isso não era verdade, a imagem do cinema não é tridimensional, via-se a mesma coisa da plateia e dos camarotes; e aliás os tempos eram outros, de religião repressiva, de fascismo pacóvio e de censura rigorosa, nem sequer se podia imaginar uma mulher nua dentro de uma banheira, pois era pecado, quanto mais vê-la, vê-la mesmo, isso seria demais.
Todos os momentos mágicos e nostálgicos desse Viriato de outros tempos desfilaram diante de nós, enquanto assistíamos à sessão de cinema, que consideramos histórica, do dia 21 de Fevereiro. E já agora vem a propósito lembrar que a primeira projecção de cinema em Viseu foi feita no Teatro Viriato pelo Senhor Luciano, um homem dinâmico e empreendedor, proprietário de uma cervejaria mesmo em frente ao teatro, que se chamava precisamente, numa sentida homenagem à arte das imagens em movimento, a Cervejaria Cinema.
Por todos estes motivos, teria sido muito interessante que a direcção do Teatro Viriato tivesse convidado, nesse dia de regresso em grande do cinema à sua sala de espectáculos, uma pessoa conhecedora desses esquecidos tempos, para no fim da sessão fazer uma evocação da história deste nobilíssimo espaço, narrando a todos os espectadores presentes um vibrante resumo das peripécias do antigo Viriato.
Ainda por cima, o filme exibido, o Couraçado Potemkine, de Sergei Eisenstein, durante muito tempo considerado, lado a lado com A Quimera do Ouro, de Charlie Chaplin, um dos dois melhores filmes da história do cinema, exigia, dado o seu imenso valor artístico e sua enorme importância cinematográfica e até política, um palestrante à altura das circunstâncias.
Para sublinhar ainda mais a solenidade do evento, a projecção do filme foi acompanhada por música ao vivo, executada (e criada) por dois jovens compositores. Com uma sala quase cheia e com um filme fabuloso e libertador, estavam reunidas todas as condições para que a sessão do dia 21 de Fevereiro tivesse sido uma sessão memorável. Infelizmente, não foi assim.
Pena foi que a música de acompanhamento, demasiado estridente, não tenha estado à altura do filme. Também é de lamentar que o Teatro Viriato tivesse convidado para a palestra depois da sessão um indivíduo sem carisma, sem categoria e sem dotes oratórios, que de cinco em cinco minutos, enquanto divagava em tom pretensioso sobre o filme e sobre o seu autor, gaguejava e espreitava para umas notas, lembrando um aluno mal preparado à procura do copianço.
Este sujeito intelectualmente bastante limitado, apenas versado numa figura de retórica, a sinédoque, até teve o atrevimento de sugerir os perfumes musicais do Clair de Lune, de Claude Debussy, para música de acompanhamento do filme, o que é um enorme disparate. Mas na plateia havia uma pessoa musicalmente ainda mais ignorante do que o palestrante (ou então estava a gozar), que preconizou que se utilizasse a música de Os Marretas para o mesmo efeito. Temos a certeza de que o genial realizador do Couraçado Potemkine se deve ter revolvido no túmulo ao ouvir tais bacoradas.